[ARTIGO] TOLERÂNCIA ZERO: UMA POLÍTICA PERMANENTE

Foto: Divulgação/Paróquia de Santo Afonso

O Papa Francisco, numa das suas entrevistas recentes, afirmou categoricamente: “A luta contra os abusos na Igreja começou lentamente, mas hoje é um caminho irreversível”. Francisco disse isto em uma entrevista com a Reuters: ‘A Igreja começou a tolerância zero lentamente, e avançou. Sobre isto, acredito que a direção tomada é irreversível. É irreversível. Hoje esta é uma questão que não se discute’” (cf. https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2022-07/papa-francisco-entrevista-reuters-pullella-abuso-tolerancia-zero.html). Ainda notifica que cerca de quarenta e seis por cento dos abusos acontecem nas famílias. Há de ser afirmado que ainda com o Papa, hoje emérito, Bento XVI, foi começada enfaticamente a política da ‘tolerância zero, quanto aos abusos perpetrados na Igreja, seja por ministros ordenados, ou outros membros da Igreja vinculados a quaisquer instituições eclesiásticas.

A Igreja vive, no momento, uma profunda crise na sua credibilidade, que sempre foi extremamente importante para a missão à qual a mesma foi enviada pelo seu Fundador para exercer (cf. Mt 28,18-20). A autoridade concedida por Jesus Cristo aos seus Apóstolos tem a ver com o seu testemunho no anúncio do Evangelho. A experiência cristã é condicionada ao estilo de vida daqueles que, tidos como seus seguidores, têm a responsabilidade de viver. Essa historicidade da existência dos discípulos de Jesus sofreu uma subversão na história da teologia, ou mais propriamente na do próprio cristianismo, em muitos dos seus momentos. As tempestades causadas por membros da comunidade dos seguidores de Jesus Cristo, outrossim, nunca foram determinantes para a existência da Igreja. Como um mistério de fé, como professamos no Credo que cremos na “Igreja, una, santa católica e apostólica”, assim somos chamados a pensá-la, quando nos deparamos com situações difíceis causadas pelas fragilidades de alguns dos seus membros, que optam em não serem fiéis na resposta amorosa ao chamado à conversão. Essa ‘opção fundamental’ é feita de modo continuado, histórico e confiante na graça de Deus.

Desde 2008, durante o Ano Sacerdotal, convocado e celebrado pelo então Pontífice Bento XVI, foram feitas publicações de vários casos de ministros ordenados, começando pelos Estados Unidos, Europa e pipocando em outros recantos da catolicidade, que infelizmente e para vergonha de católicos de consciência formada, como também, homens e mulheres de boa vontade, que mesmo sem serem fiéis católicos, abominam tais desvios de conduta; casos estes de “abusos de menores”. Com a deflagração das tantas denúncias, pouco a pouco foram sendo desvelados acontecimentos que notificavam um drama institucional muito mais sério: ‘a política do acobertamento realizada pelos responsáveis institucionais católicos que acobertavam ou transferiam os problemas e seus causadores’. Esse modo de atuação fez muito mal à Igreja e a muitos menores assediados covardemente, desordenadamente, criminalmente e impunemente, por esses ‘desequilibrados psico-afetiva e sexualmente’. A Igreja, para dizer a verdade, ainda tem muita dificuldade de promover um diálogo fecundo com as ciências humanas, especialmente a psicologia. Na formação dos seminários, com raras exceções, essa relação ainda é temerosa e confusa. A questão é, importante ressalvar, não se trata só de um problema sexual; mas que precisa envolver a vida integral e integrada de quem entra nas casas de formação e ser continuada durante toda a existência dos ministros ordenados, como também de todos os que cometem este famigerado delito, que como foi já informado, tem cerca de quarenta e seis por cento existindo nas próprias famílias.

A questão a ser considerada, a partir da ideia de culpa, tem que considerar três aspectos, a saber: 1) A psicológica; 2) a penal; e 3) a pecadora. O abusador de menores, cometendo um ato contra um menor de idade, nas três direções será tratado como doente, criminoso e pecador.  Os paladinos de uma concepção distorcida da misericórdia, logo questionarão: onde está a misericórdia nestes casos, principalmente em alguns espaços eclesiásticos? Atenção! Na teologia católica, com suas especificidades – seja bíblica, dogmática, sistemática e moral -, ainda mais a misericórdia caminha conjuntamente com a justiça. Ser misericordioso e compassivo com quem comete erros, não dispensa também a compaixão a ser concedida aos que sofreram ataques hediondos por quem deve ‘cuidar das pessoas a eles(as) confiadas’, e não abusar daqueles(as) de quem deveriam proteger e promover vida plena.

O Papa Francisco, estrategicamente, escreveu uma carta ao Povo de Deus (cf. https://www.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2018/documents/papa-francesco_20180820_lettera-popolo-didio.html), com a intenção de mostrar que essa luta não poderá ser só dele, nem de grupos, nem só da Cúria Romana, mas sim de toda a Igreja. De todos os fiéis, que em tantos recantos do mundo, precisam acompanhar, discernir e denunciar essas situações, tanto dentro como fora da Igreja. Lembremo-nos: esses fatos não acontecem só na Igreja! É fenômeno humano, delicado, sério, e que deve preocupar a todas as pessoas. É o bem das crianças e adolescentes que estão em questão. Referindo-se a estes abusos sexuais, assim se expressa o Papa: “um crime que gera profundas feridas de dor e impotência, em primeiro lugar nas vítimas, mas também em suas famílias e na inteira comunidade, tanto entre os crentes como entre os não-crentes. Olhando para o passado, nunca será suficiente o que se faça para pedir perdão e procurar reparar o dano causado. Olhando para o futuro, nunca será pouco tudo o que for feito para gerar uma cultura capaz de evitar que essas situações não só não aconteçam, mas que não encontrem espaços para serem ocultadas e perpetuadas. A dor das vítimas e das suas famílias é também a nossa dor, por isso é preciso reafirmar mais uma vez o nosso compromisso em garantir a proteção de menores e de adultos em situações de vulnerabilidade” (cf. Idem).

A Igreja, na maioria das situações, tem tomado providência. É necessário, seguirmos as orientações dadas pelo Pontífice, que estão a servir, tanto para os de dentro, como para os que estão fora das comunidades eclesiais. A cultura do ‘acobertamento’ já não pode ter ‘lugar’ na vida da Igreja, por mais que existam tentativas obscuras de conivência com tais absurdos. Quando os responsáveis diretos pecam por omissão ou ignorância, que exista da parte dos demais membros do Povo de Deus a tomada de atitudes corajosas, honestas e evangélicas em buscar soluções que contemplem a misericórdia, concomitantemente com a justiça. Corrigir alguém que está no erro, não é falta de caridade; falhamos com esta quando não corrigimos hoje e vemos morrer amanhã, aqueles que direta ou indiretamente estão envolvidos no contexto.

As estruturas têm sido constituídas. Mas é importante que elas existam para funcionar, e não só para dar uma ‘falsa e desonesta’ satisfação à sociedade. A política que deve ter chegado para ficar é a da verdade, a caridade, a justiça e o bem de todos. Situações difíceis nunca serão enfrentadas quando o clericalismo, tanto denunciado pelo Papa Francisco, assume as motivações para as tomadas de posições. Nele o ‘bem estar’ dos ministros ordenados, ou pessoas ligadas à Igreja, é mais importante do que a saúde das vítimas e a consecução da justiça. Passos significativos estão sendo paulatinamente dados. Não podemos pensar que é, pelo menos, nestas situações algo ‘sistêmico’. Como tem sido acompanhado, não podemos generalizar. É desonesto e perverso etiquetar a maioria dos homens e mulheres consagrados como pessoas com desvios de conduta nestas áreas. É mentira e covarde essa atribuição. A extrema maioria que está em todo o mundo é fiel e digna. A história da Igreja é sustentada também na sua humanidade, por causa da santidade da maioria dos seus filhos e filhas. 

Por fim, temos que tratar destas questões com transparência e abertura no mundo e para a cultura de hoje. Aquilo que tem a ver com a vida da Igreja e da sociedade deve ser refletido por todos nós que estamos vivendo essa etapa da história. A força da Igreja está no fato de que a ‘Pedra Angular’ que a sustenta é Jesus Cristo, nosso Salvador e Redentor. Assumamos nossas responsabilidades com coragem e determinação. Assim o seja!

Por Matias Soares / Padre e Pároco da Paróquia de Santo Afonso em Natal

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