RAÍZES FEMINISTAS: NÍSIA FLORESTA É A PRIMEIRA NA SÉRIE COM OBRAS DO GÊNERO DA EDITORA MINEIRA LUAS

Imagem: Reprodução

A editora mineira Luas, especializada em literatura feminista, volta às raízes do movimento no Brasil com a criação da coleção “Precursoras”, dedicada a resgatar obras de pioneiras do gênero. A escolhida para iniciar a série não poderia ser mais emblemática: Nísia Floresta Brasileira Augusta, visionária e potiguar, comparece com dois ensaios num único livro, o clássico (e polêmico) “Direitos das mulheres e injustiça dos homens” (1832) e o raro “A Mulher” (1859).

O lançamento foi realizado nesta quarta-feira, às 18h30, no Youtube, com Cecília Castro, Maria do Rosário Pereira, e Constância Lima Duarte. Assista o vídeo no link: https://www.youtube.com/watch?v=E9LJroPsRRg.

A coleção “Precursoras” reedita mulheres do século 19 e início do 20 que tiveram suas obras esquecidas ou invisibilizadas ao longo do tempo. A diretora e fundadora da Luas, Cecília Castro, afirma que não foi muito difícil chegar à decisão de inaugurar a coleção com Nísia. “Quando criei a editora, sempre pensei naquelas que vieram antes, que abriram os caminhos para estarmos aqui. Nísia foi a primeira delas no Brasil, portanto, pra mim e a curadoria foi uma escolha justa. Ela é uma referência obrigatória”, afirma.

A edição dedicada a Nísia, assim como todas da coleção, traz estudos e notas de pesquisadoras contemporâneas que contextualizam a obra em sua época e nos dias de hoje. Constância Lima Duarte, que há mais de 30 anos estuda Nísia, assina o ensaio atual da publicação. Para Cecília, o objetivo da coleção é não só espalhar a palavra, mas também fornecer bases para novos estudos, futuras pesquisas, e outros olhares. “É fundamental o papel das pesquisadoras para o resgate de pioneiras como Nísia. É resgatar e também reconstruir a história delas”, diz.

Obras como as de Nísia Floresta, ressalta Cecília, foram feitas numa época em que só o ato de escrever, para uma mulher, era visto como algo proibido, ridículo e infame. “No universo editorial, esse contexto generalizado de exclusão e invisibilidade das mulheres não foi diferente, e a mudança vem sendo gradativa”, enfatiza. Dessa forma, muitos dos livros feministas pioneiros não foram reeditados e se perderam no decorrer do tempo, sendo esquecidos junto com suas autoras.

A Editora Luas, que tem apenas um ano de mercado, surge num contexto bem diferente daquele em que Nísia viveu. Agora, há interesse em valorizar a produção literária feminina, conhecer suas pioneiras, e formar bases para o pensamento contemporâneo. “Acredito ser função de editoras pequenas como a Luas, resgatar esse tipo de trabalho, pois são livros difíceis de achar, não estão nas livrarias dos shoppings. Então, quando mais reedições, melhor. As mulheres estão olhando para a própria história com um olhar mais crítico e exigente”, afirma.

TRADUÇÕES E TRADIÇÃO

A mulher brasileira que porventura soubesse ler em 1832, viu logo que “Direitos das mulheres e injustiça dos homens” era um petardo a explodir no meio de uma sociedade conservadora, patriarcal; e desigual. É de se imaginar que tenha aberto muitas mentes em sua época – e ainda hoje. “Naquele tempo as mulheres só tinham deveres. Falar de direitos era uma revolução. Nísia trouxe pro Brasil o que havia de mais vanguarda no pensamento de emancipação feminina”, afirma Constância Duarte, uma das curadoras da coleção “Precursoras”, e pesquisadora pioneira em Nísia Floresta.

Mesmo tendo tanta bagagem sobre Nísia, Constância conta que ainda é capaz de se surpreender com a musa proto-feminista. É o caso do mistério envolvendo “Direito das mulheres e injustiça dos homens”. Consta inicialmente que ele teria sido a tradução livre de “Em defesa dos direitos da mulher”, da britânica Mistriss Goldwin (pseudônimo de Mary Wollstonecraft), lançado em 1792. Nísia creditou esse dado no livro de 1832. Mas nem ela sabia que estava errada.

Novas pesquisas ao longo da década de 90 constataram que houve uma “pequena” confusão: o texto que Nísia traduziu havia sido na verdade “Les Droits des Femmes et l’Injustice des Hommes par Mistriss Godwin”, a edição francesa de um tratado inglês escrito anonimamente em 1739, e creditado a uma certa “Sophia, a Person of Quality”. O título original era “Woman not inferior to man”. Pesquisas apontam que esse texto inclui trechos de obras dos séculos 15 e 17, ou seja, vem sendo traduzido e transformado através de séculos.

Um editor francês chamado M. César Gardeton reimprimiu o livro da desconhecida Sophia em 1826, e para torná-lo mais vendável acrescentou a Mrs. Goldwin ao título. Essa foi a versão que Nísia Floresta leu, traduziu e fez chegar às leitoras e leitores brasileiros de 170 anos atrás. Constância afirma que diante de tão longo e sinuoso percurso – feito de traduções fiéis ao texto “original”, e de outras nem tanto – o “Direitos das mulheres” continua suscitando reflexões, apesar do muito que foi dito e descoberto.

“Vejo esse livro como uma obra coletiva, porque se alimenta de vários textos, tem variadas raízes, e remete a uma coletividade”, diz. Constância afirma que Nísia assinou a tradução de um texto de múltipla autoria, que vinha sendo construído ao longo dos séculos. “Ela agiu como intermediária e trouxe para o país as vozes que muito antes já clamavam pelos direitos das mulheres”, analisa.

Já em “A Mulher”, Nísia se volta sobre os costumes da mulher francesa burguesa do século 19. Em especial, ela critica a aversão das senhoras em amamentar os filhos, algo visto como animalesco e indigno, sendo relegado às amas de leite. No Brasil, o parâmetro era fácil com as escravas há séculos.

“No texto, Nísia fala sobre as vantagens da amamentação materna, da saúde e do vínculo afetivo. Ela via como um ato de amor entre mãe e filhos. É algo comum hoje, mas revolucionário naquela época”, diz.

Constância formou-se doutora em literatura brasileira na USP em 1991 com a tese “Nísia Floresta: Vida e Obra”. Foi professora na UFRN durante anos até se aposentar e voltar para Minas Gerais em 1999 e atuar na faculdade de Letras da UFMG. O fascínio por Nísia remonta a 1986, quando as obras da potiguar eram raríssimas, e a professora precisou sair em campo para resgatá-las. Foi de Recife a Paris para procurar. “A Biblioteca Nacional tinha apenas dois livros dela. Felizmente, isso mudou”, lembra.

Por Tádzio França / da Tribuna do Norte
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