Pe. José Lenilson de Morais – Vigário Paroquial de São José de Mipibu
“E Deus viu que era bom… e Deus viu que era muito bom”. Assim, em forma poética, descreveu o Autor Sagrado a criação do mundo nos capítulos I e II do livro do Gênesis. O mal entra como fruto da escolha livre dos anjos e dos homens (Gênesis, cap. III). A partir daí a criação herda uma desordem que chegará a ser motivo para alguns pensadores cristãos desenvolverem um pensamento de dualidade entre o céu (que é sempre bom) e o mundo, que é mal. A consequência verifica-se numa ruptura entre espiritualidade e atividades sociais, e o pior numa separação entre o “sacro” e o “mundano”.
Esta ideia, preponderantemente presente no medievo, continua ainda muito forte quando propomos uma separação radical entre “as coisas de Deus” e “as coisas do mundo”. O desastre é bem visível: de um lado ficam os bons, os fiéis, os farisaicamente corretos e, do outro, os pecadores, infiéis e mundanos. Gera-se assim uma escandalosa divisão e quase oposição entre a espiritualidade e o mundo atual, que depois vai tornando-se nuns e noutros em dicotomia entre fé e vida.
É bem verdade que o homem pós-moderno continua a ter sede de algo que o preencha, que seja mais que o virtual, que dê sentido a sua existência. A busca por este sentido foi uma das causas primeiras para que a questão religiosa estivesse presente em todos os povos da face da terra. Mas, hoje, as possibilidades de respostas são quase infinitas, pois seitas e religiões chuviscam ou borbulham por todo o globo terrestre e compõem igualmente as inúmeras opções deste mundão chamado internet. Diante disto, o cristianismo apresenta-se como a identidade religiosa de muitos povos e mantem sua vocação universal, sendo, contudo, desafiado cada dia a responder as questões de sempre, porém reformuladas a partir das ideias e comportamentos das pessoas deste nosso tempo. Como nós cristãos haveremos de nos ocupar de tamanha responsabilidade? Respostas imediatas são quase sempre falíveis, mas sem dúvida o modelo mais adequado para responder de modo não só convincente, mas também coerente aos coetâneos é aquele inspirado na própria realidade da Encarnação do Filho de Deus.
“E a Palavra se fez Homem e abitou entre nós” (Jo 1, 14). Como poderemos falar aos homens se não sendo um com eles e compartilhando de suas angustias e esperanças mais profundas? A resposta da fé torna-se espiritualidade quando é capaz de envolver-se com o mundo para o transformar. É belo encontrar na Oração Eucarística VI D, uma breve síntese do deveria ser a espiritualidade do cristão no mundo atual: “Pai misericordioso e Deus fiel, Vós nos destes vosso Filho Jesus Cristo, nosso Senhor e Redentor. Ele sempre se mostrou cheio de misericórdia pelos pequenos e pobres, pelos doentes e pecadores, colocando-se ao lado dos perseguidos e marginalizados. Com a vida e a palavra anunciou ao mundo que sois Pai e cuidais de todos como filhos e filhas”. É este encontro com o outro, fazendo-se próximo para ouvi-lo e compartilhar de suas dores que abre caminhos para o encontro com Cristo, raiz e plenitude de nossa espiritualidade. Não pensemos que é o aumento de títulos devocionais, de “montes” milagrosos ou de ritualística desencarnada que sustentara a experiência de Deus dos homens e mulheres de nosso mundo. Ligar a televisão hoje é deparar-se com este desencontro (oposto do nome religião) entre sagrado e profano. De um lado, canais que ridicularizam e menosprezam a religião como algo ultrapassado e digno do escárnio; de outro, um frenesim de programas em torno de curas, milagres, promessas de enriquecimento, profecias (sem profetismo). Como ainda estamos distantes do modelo de Jesus. Miserere nobis!
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