Ainda quando estava fazendo o meu Seminário Menor, sempre ouvia frases soltas acerca das motivações pelas quais, o grande e renomado Dom Helder Câmara usava uma batina. Pelos anos noventa, ainda havia certa efervescência das ideias patrocinadas pela nossa teologia latino-americana, a denominada Teologia da Libertação. Com as investidas e correções processualmente feitas, com novos acontecimentos na geopolítica global e com o avanço ideológico e prático do neoliberalismo, com suas articulações na própria América Latina, esse estilo de pensar uma elaboração teológica, partindo da nossa realidade, com seus desafios de tantas injustiças sociais, foi pouco a pouco sendo arrefecido. A própria experiência clerical também me impulsiona a dizer que faltou, em alguns paladinos dessa corrente, um testemunho mais evangélico do que eles tanto apregoavam. Contudo, essa é uma discussão da qual me distancio nestas poucas linhas.
Como presbítero jovem não tive nenhuma proximidade com Dom Helder. Mas, como dizia um experimentado Cura de aldeia, com quem convivi nos meus primeiros anos de ministério presbiteral, quando “o povo diz é porque é”. Mesmo quem tem alguma dificuldade de aceitação dos ideais defendidos e testemunhados por aquele grande pastor, não nega a sua coerência de vida, seu testemunho cristão e eclesial. Dom Helder vivia o que ensinava. Essa é a grande força dos santos e autênticos mestres do evangelho. Nos vários discursos e pregações que vi e ouvi de Dom Helder, graças aos meios de comunicação, em nenhum deles percebi alguma defesa de ideologias e fantasias partidárias. O conteúdo das suas aclamações está no evangelho e nos ensinamentos da Igreja, principalmente nos do Vaticano II e suas derivações nas conferencias latino-americanas, em Medellín e Puebla. Em vários lugares do mundo, por onde passei, encontrei marcas das palavras e do testemunho deste Dom: Bélgica, Estados Unidos, Inglaterra, Itália etc. Era um homem que sentia com a Igreja. Aliás, os pastores daqueles idos, como os de hoje, com outro modo de ser e fazer, assumiram, mesmo com suas diferenças de pensamentos, o sentir com a Igreja mais autenticamente, tendo em vista o bem do povo de Deus. Basta lembrar o “Pacto das Catacumbas”, firmado ainda durante o Concílio, que poderia ser retomado ainda hoje. Procuraram manter uma sintonia com a Sagrada Escritura, a Tradição Viva da Igreja, o seu Magistério, expressado universalmente nas novidades do Concílio Vaticano II, e os grandes teólogos de então. O protagonismo da Igreja latino americana daquele período tem uma construção, que tomando as palavras do Papa Francisco, foi bem artesanal.
Contudo, a história é dinâmica. Não é razoável viver e fazer a leitura dos sinais dos tempos de cada época, querendo assumir a lógica do eterno retorno, nem cair no anacronismo. É um modo desorientado de estar situado no tempo e no espaço. Dom Helder tinha clareza do momento que estava vivendo. Era uma pessoa situada. Foi um homem, cristão e ministro ordenado, muito bem inserido na vida das pessoas. Confiava e lutava por transformações porque sabia que a história era e é contínua. Não era alguém com mentalidade de príncipe, como bem afirma o Papa Francisco, se referindo a algumas peculiaridades de hoje.
Aí vem a questão sobre a qual, de modo enfático, quero tratar, que é carregada mais de simbolismo, do que de elucubrações racionais: na batina de Dom Helder está o sentido da sua abnegação, amor aos irmãos, profetismo, doação, serviço, entrega, pobreza, confiança na força do evangelho e na sacramentalidade da Igreja, como instituição querida pelo próprio Jesus Cristo. Nesse sinal está metaforicamente a tradução simples e universal dessas qualidades que sempre foram sinais de santidade dos grandes pastores da Igreja. Esses fenômenos são confirmações autênticas do discípulo de Jesus Cristo, que fez da sua vida um testemunho missionário e força de libertação, em um momento delicado da nossa história.
Quando lemos alguns autores, como o grande teólogo Karl Rahner, que são capazes de elaborar uma teologia da pobreza, pensando os conselhos evangélicos, somos provocados a internalizar que para amar e promover incondicionalmente o Reino de Deus, precisamos ser livres. Para Rahner, «a pobreza como sequela e participação no destino de Jesus numa espécie de identificação mística e a pobreza como exortação neotestamentária, como conselho a deixar tudo, vender os próprios bens e dar-lhes aos pobres, não são aspectos inconciliáveis» (Cf. K. Rahner, Teologia della povertà, p. 34). Essa relação entre amor ao Reino de Deus e essa pobreza de espírito, que orienta o discípulo de Jesus a assumir a pobreza material como opção de vida é uma das questões elementares para o testemunho no seguimento do Mestre e Senhor e o serviço abnegado aos irmãos. Pela história conhecida e testificada por todos, Dom Helder Câmara tinha essa consciência cristã.
Para ele, seguindo essa linha de pensamento, sua indumentária não era sinal de vaidade. Nem para autoafirmação narcísica. Não era sinal das quimeras de um tempo que espera mais autenticidade, do que aparências; como também pode e deve ser para tantos outros irmãos, que assumem estas atitudes. Não tenho a intenção de fazer juízo de valor. Não é isso! A questão é mais propositiva. Na sociedade do espetáculo, novos mecanismos de conquistas estão sendo assumidos, porque existe uma ânsia frenética de buscar o que é desejado ser. Muitos ministros ordenados da Era pós-moderna estão alucinados e pedindo socorro para querer ser. Não pelo que é essencial, mas pelo secundário. Talvez, seja uma das grandes dificuldades que estão tendo muitos clericalizados, em entender a teologia do Papa Francisco. Ele espera e está provocando positivamente a todos os membros da Igreja, e aqui estamos todos nós, ministros ordenados, à maturidade cristã e eclesial. Ele também nos pede uma teologia da pobreza, uma Igreja pobre e para os pobres. Penso que, neste sentido, a vida e o testemunho de Dom Helder podem ser uma luz para que pensemos o porquê das nossas escolhas e que tipo de protagonismo precisamos assumir.
Quando, em outra reflexão, tentei fazer uma leitura aproximativa da identidade do presbítero, com as hermenêuticas contrapostas que foram assumidas, em nossos contextos, tive presente que em determinado momento foi radicalizada a polarização infecunda que atrofiou, e continua subjugando as orientações para a formação da pessoa dos ministros ordenados logo após o Concílio. Dizem que a crise foi grande. Ela está acontecendo de novo, porque vivemos mais uma vez, uma mudança de época. Isso é patente com algumas rejeições que estamos percebendo nas atitudes de quem refuta o programa pastoral do Papa Francisco para a Igreja nos dias atuais. Penso que há uma confusão, que está sendo alimentada pelas ofertas da pós-modernidade, na formação e identificação de quem é o presbítero hoje. Entro nesta questão, porque a relaciono com a pessoa de Dom Helder, que assumiu criteriosamente que tipo de ministro ordenado precisava ser para aquele momento da história. E suas escolhas tinham como referenciais os ensinamentos do evangelho e os da Igreja de então, que é o mesmo sujeito eclesial de hoje, sem renunciar, nem ferir a urgência de ser sinal de esperança e assumindo os sofrimentos e angústias das pessoas, especialmente dos mais pobres e que estão nas periferias geográficas e existenciais do mundo e da história (Cf. Gaudium et Spes, 1). Essas possibilidades e horizontes precisam ser contemplados.
Por fim, o uso metafórico do título “A Batina de Dom Helder” tem uma intenção, que está posta como um programa de vida assumido autenticamente por este exemplar pastor e, também, como via de questionamento acerca da missão e identidade dos ministros ordenados para a época contemporânea. Assim o seja!
Por Padre Matias Soares
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