[ARTIGO] A MENTIRA ECLESIÁSTICA

Foto: Reprodução/Instagram

No contemporâneo, temos sentido amiúde a expressão ‘pós-verdade’. Assim como outros neologismos, esta é mais uma forma de declinação do que seja a mentalidade e os ditames da cultura hodierna. Nesta, a objetividade da verdade cedeu lugar à valoração e relativização da mentira que, dita de muitas formas e continuamente, pode tornar-se uma ‘verdade’. Esta última, passa a ser, em muitas circunstâncias, consequência das narrativas, principalmente daqueles que detém o poder e os meios de comunicação. Com esse método, o ordinário é gradativamente substituído pelo extraordinário. É de fato uma reviravolta de paradigmas e modelos civilizatórios. Nas coxias eclesiásticas, estes estilos escabrosos, às vezes, também fazem-se sentir. Para os medíocres e carreiristas de plantão, essa é a única via encontrada para que degraus sejam subidos e “unhas sujas” sejam adquiridas. Historicamente, os penduricalhos sistêmicos foram sendo constituídos e, com isso, fomos esquecemos o cristianismo do caminho para assumirmos o do pertencimento (cf. D. Collin, “O cristianismo ainda não existe”). O Papa Francisco tem profeticamente denunciado essas perversões, inclusive na cúria romana. Ele enfrenta muitas resistências, nos discursos e, ainda mais, nas práticas de muitos que assumem mentalidades de príncipes, no modo de agir e conduzir a vida da Igreja. Tem sido difícil a conversão de tantas estruturas e mentes aliadas aos pecados pessoais e conjunturais (cf. PP Francisco. “A Cúria Romana e o Corpo de Cristo, 22/12/2014).

Quando paramos para contemplar os evangelhos, vemos Jesus Cristo em muitas pelejas com os fariseus e doutores da lei, porque eles colocam fardos nas costas dos outros, mas eles mesmos não os carregam (cf. Mt 23,4). A vivência da mentira, também nos faz assumir a prática dos ‘doutos’ do tempo de Jesus. Isso traz consequências desastrosas à credibilidade da Igreja. Muitas vezes, na ânsia de ‘salvaguardar’ o poder, perdemos a nossa ‘autoridade’. A partir da proposta do que seja o Reino de Deus, o poder sem a autoridade do ‘testemunho’, nos descredibiliza. E uma Igreja sem credibilidade é uma lástima. No mundo, quando procuramos dar o nosso testemunho, com referência ao que é justo, sem dúvida, sofreremos perseguições, injustiças e ataques; mas a verdade deve ter a ‘última palavra’ e não a mentira. Uma instituição em que a mentira tem mais valor do que a verdade, esta organização, sem dúvida, está em declínio. Ela pode aliar-se aos sistemas espúrios da história, mas moralmente ela está degradada. Ela não é livre. É uma escrava do pai da mentira (cf. Jo 8,32.44).

Num sistema corrompido, a mentira torna-se verdade e a verdade vem a ser mentira. Isso é bem interessante, quando partimos de uma hermenêutica teológica da história e da humanidade. O pós-moderno, com a força das mídias sociais, intensificou essa trama diabólica, mas ela sempre esteve presente e atuante no desenvolvimento do ser humano, desde os primórdios (cf. Gn 3). Esse caos existencial é inerente à condição humana marcada pelo pecado. É constatável que ele nos ‘cega’. Perdemos a luz e somos envolvidos em situações de penúria e escuridão. Nos afogamos nas vaidades e na sede de ‘poder’. Este é também uma das tentações de Jesus (cf. Mt 4,6). O anseio por ele, faz com que as pessoas assumam a atitude de humilhação dos outros, negação dos pares, insensibilidade e desvalorização da escuta à possível aceitação da verdade. Temos que estar muito atentos e não sermos homens injustos com quem está na companhia da verdade. Uma conversão profunda, com a evangelização das nossas entranhas, faz-se mister, sem apontamento para ninguém, já que todos somos chamados à mudança de vida, pela conversão ao Evangelho (cf. Mc 1,14-15).

Num período de preparação às celebrações natalinas, estejamos abertos à revisão das nossas consciências. Todos nós, temos que servir com a autoridade gerada pelo testemunho da caridade na verdade. “A quem mais é dado, mais será cobrado” (cf. Lc 12,47-48). Nas nossas estruturas eclesiais, sejam elas pessoais ou organizacionais, necessitamos da ‘saída das nossas comodidades e papeis’, para olharmos o Outro face à face. Temamos aqueles que não são capazes de olhar os seus semelhantes nos olhos. Somos chamados a ver e a respeitar a dignidade de cada pessoa. Neste período em que nos preparamos para celebrar a Encarnação do Filho de Deus, somos chamados a rezar a palavra que lemos e a praticá-la em nossas realidades eclesiásticas. Assim o seja!

Por Pe. Matias Soares / Pároco da Paróquia de Santo Afonso Maria de Ligório em Natal

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