[ARTIGO] DEUS CASTIGA? A VERDADE E OS RISCOS DE UMA INTERPRETAÇÃO FUNDAMENTALISTA

Foto: Arquivo/Pascom Mipibu

Tudo o que acontece na vida pessoal do ser humano e no seu habitat está sujeito às mais diversas interpretações, pois é próprio do humano “julgar”, emitir opinião, analisar e avaliar acontecimentos e situações. Não é diferente quando acontecem desastres naturais, fenômenos fortes e surpreendentes da natureza. É perfeitamente aceitável que os nossos ancestrais, quando nem rudimento da ciência existia, ao verem os relâmpagos e ouvirem os trovões com sua estupenda força, fizessem uma ligação direta com um ser superior, com uma divindade, que os advertia sobre sua pequenez e fragilidade. Junte-se a isto o evento da morte e logo se entende o medo do “castigo dos deuses” e, posteriormente, do “castigo de Deus”.

Do ponto de vista bíblico, seria desonestidade negar a existência de uma punição divina. Para o povo hebreu, Deus castiga tanto os fiéis quanto os infiéis. Em todo o Antigo Testamento encontramos dezenas de textos bíblicos que mostram o agir exortativo e punitivo por meio dos castigos. Dois textos são bastante conhecidos pela quase totalidade dos cristãos: as pragas do Egito (Ex 7–10) e as serpentes abrasadoras (Nm 21, 1-9). Contudo, mesmo no A.T. já encontramos uma evolução do pensamento (melhor compreensão da Revelação), especialmente no livro de Judite quando esta assim se expressa: “Apesar de tudo, agradeçamos ao Senhor nosso Deus que nos põe à prova como a nossos pais. Lembrai-vos do que ele fez a Abraão, de como provou Isaac, do que aconteceu a Jacó. Como ele os provou para sondar os seus corações, assim também não está se vingando de nós, mas, para advertência, o Senhor açoita os que dele se aproximam.” (Jt 8, 25-27). É algo maravilhoso essa interpretação. A Palavra ilustra e interpreta a Palavra: Deus “não está se vingando de nós, mas, para advertência, o Senhor açoita quem dele se aproxima”. Nesta linha interpretativa é que no Novo Testamento a carta aos Hebreus, um dos textos litúrgicos lidos nas primeiras comunidades cristãs, assim declara: “É para a vossa educação que sofreis. Deus vos trata como filhos. Qual é, com efeito, o filho cujo pai não educa? (…) Toda educação, com efeito, no momento não parece motivo de alegria, mas de tristeza. Depois, no entanto, produz naqueles que assim foram exercitados um fruto de paz e de justiça” (Hb 12, 7-11).

Essa visão bíblica, em hipótese alguma pode ser usada para transferir para Deus a responsabilidade do que está acontecendo no Rio Grande do Sul e em tantas outras partes do mundo. A responsabilidade direta ou indireta é do homem. Há décadas, os cientistas viam avisando sobre as consequências do crescente aquecimento global. O Papa Francisco, desde o início de seu pontificado, tem levantado forte voz profética convidando os chefes globais, as instituições e todos os homens e mulheres a atuarem rápida e eficazmente para evitar os danos a natureza e aos seres humanos através de uma nova cultura do cuidado, de uma “ecologia integral”. Deus não está castigando a humanidade, Deus chora com os que choram, Deus se faz presente nos pés e nas mãos dos que socorrem, dos que são solidários. É uma grave ofensa a Deus atribuir-lhe aspectos de um “deus vingador”, que teria prazer na dor do outro. Há um episódio na vida de Jesus que revela o quanto ele assume a superação da visão de um ser divino vingativo. Certa vez, Jesus não foi aceito num povoado dos Samaritanos. Tiago e João ficaram indignados com aquele povo e perguntaram a Jesus: “queres que ordenemos desça fogo do céu para consumi-los?”. A resposta de Jesus foi pronta e firme: Jesus voltou-se para eles e os repreendeu. O fato está registrado no Evangelho de Lucas 9, 51-55. Certamente a mesma coisa o Senhor faria hoje àqueles que atribuem as guerras, as catástrofes, o mal, o sofrimento e a morte como sendo um “castigo de Deus”. Tais pessoas esquecem a síntese mais perfeita e completa de toda a Sagrada Escritura: “Deus é amor. Quem ama permanece nele” (Cf 1Jo 4, 7-21).

Por Padre José Lenilson / Arquidiocese de Natal

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