ARTIGO – NO VÁCUO PASTORAL

Foto: Reprodução/Instagram do Pe. Matias

A proposta do Concílio Vaticano II foi a de uma Igreja mais pastoral. Longe de pensar a relativização dos elementos doutrinais, o que os padres conciliares tiveram presente foi o ‘modo’ com o qual ela deveria estar envolvida com o mundo e nele, sem negar a sua identidade mais profunda (cf. LG 1; GS 1). A leitura dos pronunciamentos de João XXIII e o Paulo VI, respectivamente na abertura e encerramento dos trabalhos conciliares nos ajudam a entender e alcançar isso. Há que ser lembrado que os grandes teólogos do Concilio tiveram a preocupação de fazer a síntese entre a dogmática e a pastoral (cf. K. Rahner, J. Ratzinger, De Lubac…). Os do Pós-evento também seguiram esse caminho de integração entre a teologia e o diálogo com as ciências humanas. Temos que lê-los para entender as perspectivas conciliares. A fé professada é a que deve ser vivida, encarnada, envolvida com a dinâmica da história e da existência humana.

As Igrejas Particulares, com suas forças vivas, estruturas diocesanas, paroquiais e demais organizações, deveriam canalizar as orientações pastorais que o Concílio propôs, fazendo com que a renovação eclesial seja implementada e as inovações pastorais sejam recepcionadas por todas as comunidades eclesiais. O estilo de ‘ser pastora e fazer a pastoral’ precisa acompanhar as percepções tão bem sintetizadas por S. João XXIII a dizer que ela é “Mãe e Mestra”. Essas orientações devem ser concretizadas na realidade de cada Arqui(Diocese), pois é nela que acontece a universidade da Igreja Católica. A ação pastoral é o agir da Igreja no mundo. A Diocesaneidade torna-se visível quando os sujeitos eclesiais que compõem uma Igreja Particular, com seu Bispo, o Clero, que aí serve, e os Fiéis assumem a ação orgânica, continuada e metodológica da prática missionária e pastoral numa circunscrição geográfica, realidade que com as revoluções das mídias sociais também encontra sérios questionamentos e problemas novos.

O Papa Francisco nos ensina que é urgente uma ‘conversão missionária’ das nossas estruturas (cf. EG. Cap. I). Nós ainda estamos longe do que ele nos ensina e orienta eclesialmente. Nos provoca, mais especificamente, à questão pastoral, quando afirma: “Não ignoro que hoje os documentos não suscitam o mesmo interesse que noutras épocas, acabando rapidamente esquecidos. Apesar disso sublinho que, aquilo que pretendo deixar expresso aqui, possui um significado programático e tem consequências importantes. Espero que todas as comunidades se esforcem por atuar os meios necessários para avançar no caminho duma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como estão. Neste momento, não nos serve uma ‘simples administração’. Constituamo-nos em ‘estado permanente de missão’, em todas as regiões da terra (idem. 25)”. Neste parágrafo ele é cirúrgico e conscientiza a todos acerca do que é esperado das formas e caminhos da ação pastoral da Igreja para o nosso tempo. O paradigma é ‘missionário’. Todas as estruturas e narrativas devem assumir a Missão.

O ‘vácuo pastoral…’ apresenta-se quando não há a ‘sinodalidade discursiva e prática’ do que se quer para cada Igreja Particular e o empenho conjugado para fazer com que a participação de todos seja afetiva, efetiva e eficaz, tanto interna, como na relação dialógica da Igreja com o mundo. O Concílio tem essas prerrogativas bem postas com a Gaudium et Spes e a Lumen Gentium. Os nossos planos missionários e pastorais são bússolas que, quando assumidas, não nos deixam sem um horizonte, ou nesse vácuo que favorece os ‘aventureiros dos imediatismos megalomaníacos, vazios e autorreferenciais, que usam as estruturas eclesiásticas muito mais para a autopromoção e fomento do narcisismo, do que para uma ação pastoral que vise o ‘anúncio do Reino de Deus e o bem do Seu povo, com seus dramas e complexidades.

Na atualidade e, mais diretamente, em nossas realidades da Igreja no Brasil, nos voltando mais para o nordeste, duas percepções imediatas podemos constatar, a saber: a) – A continuidade da pastoral sacramental-conservação e b) – O incremento das devoções e missas de cura.  Poderíamos acrescentar outros fenômenos, mas o que tenho presente é despertar em nossas ‘rodas de conversas’ eclesiais uma reflexão sobre a nossa atuação pastoral nessa época de pós-pandemia e ainda num contexto hipermoderno. Façamos algumas descrições mais específicas destes fatos eclesiais e sociais:

a) – A pastoral de conservação: um primeiro dado a ser firmado é que os sacramentos são os canais de santificação do povo de Deus que compõem a Sua Igreja. Quando observamos esse modo de agir centrado ainda, só e somente só, na prática sacramental, que durante os últimos mais de mil e seiscentos anos, foi a nossa pastoral, nos damos conta de que continua esquecida a dimensão mistagógica dos sacramentos. Insistimos com um processo que no contexto subjetivista desta “época de mudança e mudança de época” não funciona, nem corresponde aos anseios antropológicos de hoje. Temos que voltar para conhecer e apresentar com um novo caminho formativo que faça com que os fiéis não vejam e recebam os sacramentos como um produto, ou uma coisa (cf. DAp, cap. VI). As paróquias muitas vezes são buscadas mais como ‘prestadoras de serviços’ e nós, ministros ordenados, “funcionários do sagrado”. Caímos na simonia. Está faltando preparação, conversão, coragem e consciência, inclusive da nossa parte, enquanto ministros ordenados, para ensinar e construir eclesialmente essa espiritualidade sacramental que favoreça o encontro e a experiência das pessoas com o amor de Deus. O Concílio propôs lugares teológicos imprescindíveis para fazermos essa reforma pastoral. Temos que aprofundar os ensinamentos conciliares.

b) – O aumento das devoções e missas de cura: a religiosidade popular é um meio que tem o seu lugar importantíssimo no inconsciente e consciente coletivo do nosso povo. Foi essa ‘espiritualidade popular’ que sustentou, eclesialmente, o caminhar das nossas comunidades interioranas durante mais de quinhentos anos. Ela continua a ser um ‘lugar teológico’ importantíssimo de ‘encontro com Jesus Cristo’, pelo reconhecimento do testemunho dos santos e santas da Igreja, com seu testemunho e vivência do seguimento radical de Jesus Cristo. Contudo, ela precisa ser sempre ‘ressignificada e aprimorada’ (cf. DAp. 258-265). A leitura destes parágrafos do documento de Aparecida nos oferece o pensamento e o que de fato deve ser essa forma de viver a fé nas nossas comunidades. As criações de devocionismos alienantes são promovidas nas comunidades paroquiais e por gurus digitais com muita frequência.  Com eles, o outro grande carro chefe são ‘missas de cura e libertação’. Aqui também há um forte apelo para o emotivo e os dramas existenciais desse tempo tão marcado pelas doenças psíquicas e sofrimentos da alma. Temos que pensar seriamente sobre o real sentido de tudo isso.

Como já mencionei, poderíamos apresentar outras práticas, mas com essas o meu intuito é gerar reflexão, indagando: Será que à luz das prerrogativas conciliares, conferências latino-americanas e magistério dos últimos pontífices, essas formas unilaterais não ganham visibilidade por que não estamos num ‘vácuo discursivo e prático’ das nossas pastorais? Temos a real compreensão do que é pastoralidade eclesial? Será que não existe uma profunda deficiência, a começar pelas nossas estruturas formativas, dentre elas as casas de formação dos futuros ministros ordenados, de uma concepção integral do ‘ser e fazer pastoral’ nos nossos dias? Estamos atentos aos sinais dos tempos, ou preferimos ficar na caverna, com medo da luz e da verdade (cf. Platão, República)? Como a “retropia” (cf. Z. Bauman) eclesiástica nos indica que estamos infantilizados eclesialmente e precisamos assumir com coragem e novo encantamento os nortes propostos pelo magistério do Papa Francisco, tão bem contextualizados? Etc…

A partir destas provocações, alinhados com o pensamento conciliar e suas posteriores influências, somos chamados urgentemente a repensar as nossas atitudes pastorais com as correntes culturais do contemporâneo. A impressão que temos é que nos acomodamos ou, por falta de aprofundamentos espirituais, teológicos e humanos, não nos apercebemos dos desafios que estão a abater em nossas portas. Esse vazio na consistência dos conteúdos, dos métodos e acompanhamentos estão a precisar de mais comprometimento de todos nós, que formamos as Igrejas Particulares, com suas estruturas e meios de realização da comunhão, participação e missão. Assim o seja!

Por padre Matias Soares – Mestre em Teologia Moral (Gregoriana-Roma); Pós-graduado em Teologia Pastoral (PUC-Minas); Membro da SBTM (Sociedade Brasileira de Teologia Moral) e Pároco da Paróquia de S. Afonso Maria de Ligório em Natal-RN

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