A Igreja no Brasil volta a celebrar neste dois mil e vinte três, mais um ano dedicado às vocações, como “Graça e Missão”. O pressuposto é apresentado tendo como fundamento o sacramento do batismo e toda a construção teológica e pastoral do Concílio Vaticano II. Com o magistério e a perspectiva levados a termo pelo Papa Francisco, com seu sonho de uma “Igreja em saída e pobre para os pobres”, o tema vocacional ganha elementos integrais e integrantes de toda a realidade da Igreja e de todos os que a compõem, tendo em vista que Jesus Cristo chama a quem Ele quer para estar com Ele e para enviar em missão (cf. Mc 1, 16-20; 3, 13-19; 16, 15).
A Igreja está pensando a vocação numa perspectiva cultural. Urge uma construção subjetiva do ‘ser vocacionado’. É fundamental que, nos nossos dias, seja promovida a cultura vocacional em todas as comunidades eclesiais. Todos somos chamados à existência, à santidade, ao seguimento de Jesus Cristo e, por sua vez, ao humanismo que viva a fraternidade e a amizade social com a nossa casa comum, na sociedade, nas instituições das quais fazemos parte. O que está em questão é o modo como vivemos as nossas relações sociais e ambientais, na preocupação de construirmos um paradigma civilizatório que encarne o significado da salvação portada por Jesus Cristo para a criação e a humanidade que se converte à sua mensagem evangélica, ou para aqueles que mesmo não a tendo escutado vivem os valores universais da justiça e da verdade.
A vocação, seja para o ministério ordenado ou quaisquer outros estados de vida na Igreja e para o mundo, precisa ser cuidada. Nos lembra o Apóstolo: “Não descuides do dom da graça que há em ti, que te foi conferido mediante profecia, junto com a imposição das mãos do presbítero. Desvela-te por estas coisas, nelas persevera, a fim de que a todos seja manifesto o teu progresso. Vigia a ti mesmo e a doutrina. Persevera nestas disposições porque, assim fazendo, salvarás a ti mesmo e aos teus ouvintes” (cf. 1Tm 4,14-16). O cuidado com a vocação como dom de Deus, em Cristo, e confirmada pela Igreja, é uma responsabilidade não só para o nosso bem e realização; mas, também, para a felicidade de todos aqueles pelos quais nos consagramos, seja na família, na comunidade eclesial e para o mundo.
A direção que darei à esta abordagem vai às pessoas dos ministros ordenados. Aos que especificamente são consagrados, pelo sacramento da ordem, ao serviço da comunidade, a saber: os diáconos, os presbíteros e os bispos. Estes têm a ‘graça e missão’ de ser servidores do povo de Deus. São ministros da palavra, dos sacramentos e da organização da comunidade. Esse modo de ser e existir passa pela profunda relação com o mistério de Jesus Cristo, o Bom Pastor (cf. Jo 10). Só em comunhão com Ele podemos doar a vida e ser benfeitores da plenitude desta. Com Ele, oramos e pedimos por aqueles que nos foram confiados (cf. Jo 17). Quando não assumimos autenticamente esses propósitos, há sinais de que fomos engolidos pelo ‘mundanismo espiritual’ (cf. EG. 93-97). Esse pode aparecer com formas próprias dos inimigos da santidade (cf. GE. Cap. II) e ainda através dos ‘falsos misticismos’ presentes na religiosidade pós-cristã (cf. T. Merton, “Ascensão para a Verdade”, pág. 19).
No contemporâneo, junto com a onda pós-moderna, os ministros ordenados estão a perder duas vias que, tanto no período seminarístico, quanto na fase pós-ordenação, são necessárias para o contínuo cuidado com a vocação, a saber: a vida de oração e o amor aos estudos. Sem estas, a própria dinâmica pastoral fica comprometida. Já em tempos idos ouvia, com muita frequência, dos meus velhos e sábios formadores: “O seminarista precisa ser Homem da capela e da biblioteca”! A época é outra e, sem dúvida, temos que nos situar e fazer a leitura dos sinais dos tempos. Contudo, esses conselhos deveriam fazer parte das narrativas dos nossos colegiados clericais no hodierno. Eles são tão antigos e sempre novos. Correndo os ponteiros da história recente, podemos dizer que a partir dos anos noventa, a capela e a biblioteca foram substituídas pelos computadores/celulares e os paramentos rendados. A contemplação e a busca pela sabedoria foram substituídas pelo ativismo superficial e a informação sem reflexão.
A vocação, seja ela ao matrimônio, seja ao ministério ordenado, pode desfalecer por falta de maturidade humana. Assim como muitos casais, vários ministros ordenados abandonam o ministério, ou são abandonados, não por falta de desejo de viver o chamado do Senhor; mas por falta de adornos continuados em zelar pelo tesouro que Deus lhes concedeu. Os consagrados vivem também nas ondas das crises contemporâneas. Nada do que existe no mundo dos clérigos é incomum no mundo dos demais filhos e filhas de Deus. A questão é que numa cultura ocidental que sempre foi educada para ver nestes ministros espíritos desencarnados do humano, com a efervescência dos meios de comunicação pós-década de setenta, onde nada do que sempre foi ‘demasiadamente humano’ deixou de ser revelado, os acontecimentos agora são publicados e massificados. Ainda há o agravante de que a Igreja é guardiã de uma teologia do sacramento da ordem que considera “o ser como sustentáculo do agir”, e não de “um agir do qual se segue o ser”. Mesmo com a centralidade do paradigma da história, na qual o ser se atualiza constantemente, enfatizado pelo Concílio Vaticano II, a teologia deste sacramento ainda está vinculada à ontologia aristotélico-tomista.
O esquema dogmático e a estrutura eclesiástica que temos hoje proporcionam um comodismo mental e desleixo no cuidado de si para melhor promover a ação evangelizadora e o bem do povo, que é de Deus. Muitos entram na vida eclesiástica como ‘funcionários do sagrado’ e por status, com o que é pior: Como operadores desqualificados tecnicamente naquilo que lhes é próprio e com desvios de personalidade, que são camuflados pela força institucional da Igreja. Com a ausência de uma vocação ‘autenticamente divina’ vem a crise pessoal que, por sua vez, gera o descrédito do coletivo. A falta de testemunho de alguns, deploravelmente, gera a desconfiança e o sofrimento de todos. Num momento em que há um clamor por testemunhas do Evangelho, aparecem os que fazem do sublime ministério um balcão de comércio e trampolim do bem-estar pessoal, esquecendo que são chamados a ser “Apóstolos do Evangelho”.
Uma das questões que, outrossim, precisam ser abordadas é acerca das razões de ser das casas de formação. No Brasil, sem dúvida, “vários destes ambientes precisam ser fechados”! As inovações queridas por Francisco para toda a Igreja devem ser implementadas também nestes lugares eclesiásticos. Quiçá, alguns pudessem ser interditados por um período em que novos planos formativos pudessem ser constituídos e aplicados. A própria metodologia da ‘sinodalidade’ pudesse ser de proveito para que os fiéis das bases fossem ouvidos sobre que tipo de ministros ordenados eles esperam para o fomento da santificação de todos, inclusive dos próprios ministros. Como seria importante que os projetos formativos fossem construídos a partir das urgências para a evangelização nas periferias geográficas e existenciais das Igrejas particulares?
Enfim, processos novos e iniciativas atualizadas podem e devem ser buscados. É tempo de coragem e reflexão. É o bem de todos que está em jogo. Nos lancemos e acreditemos no que há de vir. O cuidado de si e dos outros é o modo traduzido pelo humanismo hipermoderno para mostrar a importância do mandamento do amor aos nossos irmãos e irmãs. Esse é o testemunho que somos chamados à luz do Espírito Santo. Isso é vocação de cada filho e filha de Deus. Que o nosso Mestre e Senhor nos guie nestes bons propósitos. Assim o seja!
Por Padre Matias Soares – Pároco da Paróquia de Santo Afonso M. de Ligório, em Natal.
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