Tenho refletido com frequência sobre o tema da pessoa do “presbítero”. É uma inclinação pessoal, com preocupações que são fruto das várias interrelações, positivas, negativas, felizes e, às vezes, desafiadoras que, no decorrer de já quase dezoito anos de vida sacerdotal, tenho vivido no Presbitério ao qual pertenço, como também das vivências com outros presbíteros da Igreja do Brasil e de alhures por onde passei. Ainda, quando estava fazendo a pós-graduação na Cidade Eterna, tive uma outra feliz oportunidade de fazer um curso sobre ‘formação presbiteral’, na Congregação para o Clero, que me auxiliou a ter um olhar mais aguçado acerca de uma questão tão importante para a Igreja, na sua catolicidade, que é a da urgência com o cuidado da formação permanente do Clero, numa perspectiva integral e integrante, considerando as dimensões: humana, espiritual, intelectual e missionária/pastoral.
O meu referencial para explanar esta breve meditação é o Concílio Vaticano II, além de leituras e de colóquios com sacerdotes mais experimentados. Sou ciente que essa preocupação sempre esteve presente, não só nas relações presbiterais, como também em todas as vivências interpessoais nas quais estão presentes e são instigadas as sequelas do pecado original (Gn 4,1-16). Este acontecimento é, para nós cristãos, uma referência paradigmática: o pecado é a traição do amor a Deus e ao próximo, pois “se alguém diz: amo a Deus, e, no entanto, odeia o seu irmão, esse tal é um mentiroso; pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê. E este é justamente o mandamento que Dele recebemos: “quem ama a Deus, ame também o seu irmão” (1Jo 4, 20-21). É, de certo modo um sinal de ateísmo prático, o fomento de atitudes de ódio e divisão dentro do Presbitério. Torna-se um lamentável contratestemunho para os demais membros duma comunidade eclesial a falta de fraternidade entre os presbíteros de uma Igreja Particular.
O Cristianismo, com sua lógica interna sedimentada na História da Salvação, tem uma arqueologia profícua de exemplos e constatações relevantes que, para alguns, é até de difícil compreensão; mas que tem uma via de interpretação até hoje consistente para que pensemos sobre o mistério da iniquidade que assola a condição humana de todas as pessoas, inclusive a dos ministros ordenados. Contudo, o que não pode acontecer é que o presbítero não seja dócil (Docilitas) à experiência de conversão; ou seja, caia nas ciladas do ‘mundanismo espiritual’ (EG 93-97), na corrupção da consciência que não reconhece o seu pecado e que não se abre à manifestação do amor e da verdade de Deus em seu ser interior. O Concílio nos ensinou que “os presbíteros, elevados ao presbiterado pela ordenação, estão unidos entre si numa íntima fraternidade sacramental. Especialmente na Diocese a cujo serviço, sob o Bispo respectivo, estão consagrados, formam um só presbitério. (…) Cada membro do colégio presbiteral está unido aos outros por laços especiais de caridade apostólica, de ministério e de fraternidade. Isto mesmo, desde tempos remotos, é significado liturgicamente quando os presbíteros presentes são convidados a impor as mãos, juntamente com o Bispo ordenante, sobre o novo eleito, e bem como quando concelebram, num só coração, a sagrada Eucaristia. Cada presbítero se une, pois, com seus irmãos por vínculo de caridade, oração e onímoda cooperação, e assim, se manifesta aquela unidade na qual Cristo quis que os seus fossem consumados, para que o mundo conheça que o Filho foi enviado pelo Pai” (PO 8). A fraternidade presbiteral tem sua fonte vivificadora no próprio coração do mistério da Santíssima Trindade, a comunidade perfeita. Logo, precisa ser pensada no horizonte das virtudes teologais da fé, da esperança e da caridade.
Uma das piores ocorrências que podem existir na vida de um presbítero é ele não lutar para viver como cristão. Não ter ânsia e forte desejo de ser discípulo de Jesus Cristo. É relevante afirmar que a mais triste das percepções existentes no dinamismo de um presbitério é de nele não haver a preocupação pelo testemunho da fraternidade presbiteral. A máxima de Jesus para os primeiros apóstolos serve para todos nós, em todos os tempos das nossas vidas (Jo 13, 14-17). No “ambiente sacerdotal”, como afirmara um antigo e tão querido sacerdote do nosso presbitério, de saudosa memória, também ‘precisa’ ser assim. Talvez essa seja a grande missão
dos nossos seminários nos tempos atuais: fazer com que os futuros presbíteros busquem a contínua conversão para viver como cristãos e desejosos da “fraternidade e da amizade social” (PP Fco, FT), já neste ambiente seminarístico e depois, dentro do presbitério. Com frequência, alguns já chegam depois de ordenados, formando suas tribos e promovendo a discórdia. Já é presente um profundo sentimento de carreirismo e busca por paróquias que possam promover confortos materiais e ascensão social. As grandes preocupações não são o serviço e o testemunho de pobreza, menos ainda a formação permanente; mas as das vaidades e aparências, normalmente acompanhadas com outros tipos de comprometimentos comportamentais. Sendo assim, como o presbítero será sinal de unidade e comunhão da comunidade, se ele é de semear a divisão por onde passa, inclusive dentro do presbitério ao qual pertence? Fazendo essa leitura dos sinais dos tempos que estão postos, se faz mister lembrar que uma das principais tarefas de um Bispo diocesano é promover a fraternidade do seu presbitério. Chegando aos presbíteros, ele estará alcançando todas as células vivas da Igreja Particular, já que estes ministros são vocacionados a ser sinais da comunhão e de práticas sinodais ao interno das comunidades para as quais são ordenados a ser servidores.
Às vezes, nos esquecemos o que nos ensina Jesus Cristo, nosso Mestre e Senhor, quando afirma que “quem não está contra nós, está a nosso favor” (Mc 9,40). A fraternidade presbiteral é atropelada, muito frequentemente, pela inveja clerical. A própria estrutura hierárquica tende a incitar esses desvios de comportamentos, com tendências ao carreirismo e às tentativas de cancelamentos eclesiais, e também sociais, de quem não pensa, ou não compactua com comportamentos que ferem o espírito do Evangelho e da identidade da Igreja, com sua missão de ser nossa Mãe e Mestra (S. João XXIII). Uma atenção a algumas questões de profunda relevância para a vida da Igreja, nos tempos hodiernos e pós-pandemia, precisa ser considerada: a crise da fraternidade presbiteral é uma destas, um problema sério para o dinamismo pastoral de uma Arqui(Diocese). Urge uma análise diferenciada e atenta dos fenômenos recorrentes e que vão sendo encrustados na ordem sistêmica dos presbitérios.
Uma outra abordagem muito na linha do que afirmou o Cardeal Raniero Cantalamessa: “o que constitui fator de divisão dentro das comunidades eclesiais são as ‘opções políticas’”. As polarizações ideológicas têm sido um elemento, um tanto quanto preocupante nas contraposições dentro dos presbitérios. Somos evocados a fazer a opção fundamental pela adesão ao Evangelho como base de sustentação da fraternidade sacerdotal. É comum também que alguns confundam esta integração com fortalecimento das posturas clericalistas, que podem nos levar, como tem acontecido, e fortemente denunciado pelo Papa Francisco, à conivência e aos acobertamentos de comportamentos, doentios e famigerados, de “pouquíssimos” membros dos presbitérios, no assédio de menores e práticas administrativas desonestas, escandalizando e lesando a confiança do povo de Deus (Mt 18,6).
Por fim, estas reflexões e preocupações precisam fazer parte da caminhada dos presbitérios da Igreja Católica, na sua “totalidade”. Somos um corpo. O presbitério tem que ser contemplado sinfonicamente e, agora, especialmente neste terceiro milênio, em contexto de preocupação com a sinodalidade eclesial e eclesiástica, podemos tentar fazer a diferença na qualidade das nossas ações e testemunhos presbiterais. Nos permitamos contagiar pelos bons exemplos e façamos da Oração Sacerdotal de Jesus Cristo (Jo 17) uma referência evangélica para aprofundamos a beleza da fraternidade presbiteral. Assim o seja!
Por Matias Soares / Pároco da Paróquia de S. Afonso M. de Ligório/Natal