Todo mundo que me vem visitar, ao chegar, me faz logo a seguinte pergunta curiosa: – “Qual o seu motivo de escolher a cidade de Nísia Floresta para morar?”. E aí, eu tenho que contar-lhes uma longa história de uma velha promessa, tramada há bastante tempo e aconselhada por alguns amigos e exemplos vistos. Sou natalense e morei grande parte de minha vida no bairro do Alecrim, especificamente, na agitada feira do Alecrim. Nem é preciso falar na agenda cheia de compromissos culturais. Trânsito quase sempre congestionado e a inevitável poluição.
Adulto, eu já sonhava com meu bairro de menino, com seus sítios frondosos repletos de frutas saborosas. Ruas calmas, com seus tipos populares as povoando e causando a alegria da meninada. Vendedores nas portas com suas guloseimas gostosas, sem falar nos vizinhos amigáveis, nos presenteando com aquela culinária preparada na ocasião. Portanto, jurava por tudo no mundo deixar minha cidade agitada dos anos 2000, assim que me aposentasse. Muitos amigos e amigas, como familiares, pensavam se tratar de uma ‘jura’ de brincadeira. De família pobre, com barriga cheia. Mãe dona de casa e pai proprietário de caminhão, que fazia fretes, para aonde fosse solicitado. Tive que começar a trabalhar aos 14 anos. E quando chegou o ano de 2016, se aproximando a minha aposentadoria, com 36 anos de carteira assinada, eu planejei a minha mudança para uma cidade calma, para poder escrever e finalmente, só fazer o que gosto. As regras e compromissos, seriam deixados para trás.
Pensei em morar não muito distante de Natal. Compraria duas casas, de preferência juntas. Uma para morar e a outra, para abrigar meus trecos, quinquilharias, bugigangas e milhares de livros. Coisas acumuladas ao longo da vida e em parte em minhas andanças pelo Brasil a fora. Desejava uma casa com quintal, com fruteiras, sombra, galinhas, patos, cachorro, jardim. Espaço para terraço de conversas e banho de bica. Mesas para os cafés e tamboretes espalhados por todo canto. Na verdade, uma mistura da casa de meus pais e de meus avós maternos, de Pendências/RN. Uma espécie de réplica com os moveis antigos vistos e tocados, quando criança. tudo planejado e bem tramado no período que me antecedeu a aposentadoria. Adeus chefes bons, amigos e também os chatos e invejosos de minha vida literária natalense.
Depois de percorrer algumas cidades da chamada grande Natal, um amigo indicou-me duas casas que estavam à venda em Nísia Floresta. Em uma comunidade antiga, bem próxima da velha lagoa Papary. Lagoa, descrita pelo viajante Henry Coster, em 1810, quando este veio ao Rio Grande do Norte e passando pela cidade com o nome da referida lagoa, conheceu os pais e a menina, depois famosa mundialmente, Dionísia, que depois usaria o pseudônimo literário de Nísia Augusta Floresta Brasileira.
Ao chegar criei uma biblioteca que homenageia minha saudosa genitora, Dona Maria Estela. E esta, já recebeu centenas de visitas ilustres e pesquisadores, vindos de outros Estados. Sou, portanto, um mero e simples pesquisador, faxineiro e bibliotecário. Das 8 da manhã as 17 horas. A dita morada, eu dei o nome de São Saruê, em homenagem ao conhecidíssimo folheto de cordel do poeta José Camelo. Um paraíso. Aquela ‘Utopia’ de Thomas Morus. Ou a ‘Pasárgada’ do lírico, Manoel Bandeira.
Assim que aqui cheguei, reencontrei amizades antigas, como o escritor e historiador Manoel Procópio Júnior, que já estava aqui há duas décadas, como também a amiga que recentemente partiu, a escritora Angélica Timbó. Meu confrade e confreira no centenário Instituto Histórico e Geográfico do RN. A notícia de minha nova e definitiva morada, aos poucos foi se espalhando como rastro de pólvora na boca dos amigos. Logo fui entrevistado na sua Rádio FM pela amiga educadora Rejane e conheci o jovem radialista e comunicador Agripino Junior. Fui ao Museu e revi o amigo Raimundo Melo. Fui a feira e fiz amigos e amigas. Fui a rodoviária e tomei o melhor suco do mundo, que é a mangaba da região. Fui conhecer a afamada bodega do finado Joca Paixão, que já não era propriamente uma bodega, mas uma cachaçaria. E por falar em cachaça, fiz uma grande amizade com o dono da Cachaça Papary. Diga-se, uma das melhores do Brasil.
Me tornei rapidamente amigo de muita gente boa e simples. Barbeiros, vendedores de peixe, leite, camarão, pão, verduras. Tudo deixado com a maior amizade em minha porta. Aqui, deixei de lado os cursos universitários do passado e por gosto e paz, pedi que me chamassem de ‘seu’ Berg, o aposentado que mora perto da Lagoa Papary. E como aposentado e feliz geralmente ando de bermuda e sandálias de borracha. E por falar em meu traje cotidianamente, usado, lembro que quando fui no início dos anos 80, a ilha de Itaparica, próxima a Salvador/BA, encontrei o grande intelectual baiano, João Ubaldo Ribeiro, que me recebeu com um largo sorriso, em uma mesa de cimento em uma pracinha. Coisa que parecia um velho amigo. Ele conversando com amigos, pescadores e cachaceiros. Ao me despedi daquele famoso escritor, naquele dia ensolarado, eu só reforcei a minha antiga jura, carregado de inveja boa do mesmo, daquela simplicidade em pessoa, que fugia da fama e do dinheiro. Demonstrando que a felicidade está, aonde se vive em paz!
Aqui encontrei meu chão adotivo. Povo querido e que me quer bem. Nem preciso dizer mais, que na expressão de um de meus médicos em Natal, eu chutei o balde. Não chorei o leite derramado e nem pensei no que podia estar ganhando engravatado e com problemas na saúde. Aqui acordo bem cedinho, ao cantar do galo e pássaros livres. Avisto todos os dias a bela Lagoa Papary enquanto molho as flores do meu jardim. Aqui, encontrei a minha paz para viver e escrever minhas besteiras, o resto de minha vida, ao lado da paciente dona Selma, sempre comigo há mais de 30 anos. Nada mais quero e nada mais vou contar por hoje.
3 de novembro de 2021 – morada São Saruê, Morrinhos – Nísia Floresta/RN
Por Gutenberg Costa / Escritor, pesquisador e folclorista